Acessibilidade com foco no usuário

Elias Fernandes
Senior UX Designer
,
RD - Raia Drogasil
UPDATE:

A pandemia mudou tudo em 2020.
Por isso este artigo foi revisitado por quem escreveu em entrevista para o UXNOW com apoio da Deeploy.me

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Artigo narrado por quem escreveu!

Quando pensamos em acessibilidade, é comum a associarmos à deficiência física, mais especificamente àquele ícone azul com a imagem de uma cadeira de rodas.

Mas, você já imaginou que a acessibilidade vai além de uma rampa ou de um código bem desenvolvido para leitores de tela, com contrastes bem definidos? Ou, ainda, em uma lei que, na maior parte, tem somente instruções para se pensar nela, quando poderíamos contar com regras de ouro para fazermos somente o essencial?

Seja qual for o produto e/ou serviço a ser criado, é necessário, além das responsabilidades, entender o público que vai utilizá-lo.

Além do mais, estamos na geração da experiência, em um momento em que empresas desejam e entendem que para fidelizar os seus clientes, aumentar os seus lucros, precisam cada vez mais criar boas experiências de uso.

Era um dia comum. O telefone toca e, do outro lado, uma voz tensa e preocupada já começa a conversa:

– Elias, você pode comparecer aqui na casa do senhor João (nome fictício)?

Ao chegar no local, eu me deparo com um oficial de polícia e outro de justiça. O surdo seria levado à delegacia por não se apresentar na data informada na intimação que recebeu, em mãos, semanas atrás.

Pelo tempo de interpretação em língua de sinais e convívio com a comunidade surda, pude aprender que devemos sempre analisar a jornada junto ao modelo mental do usuário.

Perguntei ao senhor João se ele recebeu a carta, leu e assinou. Sua resposta foi positiva.

Sabendo que a maioria dos surdos não compreendem a língua portuguesa, ainda mais um texto jurídico, questionei a jornada de leitura e entendimento do conteúdo da carta. 

A explicação dele foi a seguinte:

– Instalei um aplicativo no celular que faz interpretação para libras, escaneei o texto e o aplicativo realizou a interpretação. Meu entendimento foi que eu não precisaria comparecer.

Para entendermos o que aconteceu com o senhor João, preciso explicar algumas coisas sobre a língua de sinais, em nosso caso, a de Libras - Língua Brasileira de Sinais.

Isso mesmo, a língua de sinais não é universal, ou seja, cada país possui a sua própria língua de sinais.

Atribui-se a elas o status de língua porque também são compostas pelos níveis linguísticos: fonológico1 , morfológico2 , sintático3 e semântico.

Aquilo que denominamos como “palavra” ou “item lexical” nas línguas orais-auditivas, na língua de sinais são chamadas de “sinais”. 

O que a diferencia a língua de sinais das demais é a sua modalidade visual-espacial. Como qualquer outra língua, ela também possui expressões que diferem de região para região (os regionalismos), o que a legitima ainda mais como língua.

Para formar um sinal, é preciso ter cinco parâmetros:

  • configuração de mão - formato, desenho da mão;
  • ponto de articulação - local onde acontece o sinal, pode ser em um ponto do corpo e ou no espaço neutro;
  • orientação ou direção;
  • movimento;
  • expressão não manuais (corporal e facial).

Na língua portuguesa, falamos em uma estrutura diferente da língua de sinais. Isso está relacionado à forma com que os surdos aprendem a se comunicar desde a infância.

Uma criança ouvinte escuta de seus pais a seguinte frase:

– Filho, você não pode mexer no computador do papai.

Já com uma criança surda, tendo em vista que ela não ouve, é necessário conduzi-la até o objeto, mostrá-lo e, com a expressão corporal e facial juntamente com a mão – dedo indicador balançando de um lado para outro [NÃO] –, informar à criança que ela não deve tocar no computador.

Transcrevendo essa frase, ficaria da seguinte forma:

– COMPUTADOR+NÃO

Levamos em conta aqui que a criança não ouviu e não conhece a palavra “computador”, mas está vendo o objeto em frente, sua forma, cor e estrutura.

Ela guarda em sua mente somente a imagem do objeto mais a expressão facial e corporal indicando a expressão negativa “não”.

Resumindo: você aponta para o computador e diz “não” com a cabeça e o dedo indicador.

De volta ao caso do senhor João, é possível entender a confusão que ocorreu. Os aplicativos de interpretação não realizam a tradução dentro da língua de sinais, eles mantêm a estrutura da língua oral, o que chamamos de português sinalizado. Ou seja, sinalizam palavra por palavra.

Em uma pesquisa5 com 146 surdos, que cursavam a universidade e/ou ensino médio, constatou-se que 100% não utilizam aplicativos de interpretação.

Além do motivo citado acima, de não interpretar a estrutura da língua de sinais, os avatares não possuem expressão facial e corporal, elemento importante na comunicação, e não conhecem as palavras homônimas, aquelas que são pronunciadas da mesma forma mas têm significados diferentes, como por exemplo: 

  • banco (cadeira ou instituição financeira);
  • manga (fruta ou camisa);
  • verão (verbo ou substantivo).

Na mesma pesquisa, observou-se que a maioria dos surdos perguntam e/ou buscam ajuda com ouvintes que sabem libras, para entender o texto e/ou dicionário, mas nenhum utiliza aplicativos e/ou outro recurso tecnológico.

Por isso, a reflexão que desejo trazer dentro do design é a responsabilidade de, como profissional focado no usuário, temos o compromisso real de entender não somente o impacto que realizamos na vida das pessoas, mas o sentido do nosso trabalho.

Não quero dizer que os aplicativos não são bons e não têm utilidade, pois são usados no aprendizado de ouvintes e para que muitos possam ter contato com a língua de sinais. Porém para o público destinado – os surdos –, eles não têm a utilidade que dizem proporcionar, levando em consideração que os seus usuários principais não usam e não são atendidos, chegando até o ponto de poder prejudicá-los como no caso do senhor João.

Para projetar algo para um público, seja ele especifico e/ou geral, é necessário conhecer e se aprofundar em suas dores, tanto quanto conhecer a cultura, costumes, modelo mental e a jornada para solucionar as dores.

É necessário trazer soluções que funcionem, não apenas tecnicamente, mas que atendam de forma a facilitar a vida das pessoas, como a do senhor João, que é surdo; da Maria, cega; do Paulo, cadeirante; da Eleonora, que não tem nenhuma deficiência, mas nunca leu um livro por não saber ler; e sua mãe que já é idosa e não tem os seus movimentos tão ágeis quanto os de quem leu este material.

Design não é apenas o que parece e o que se sente. Design é como funciona. — Steve Jobs

1 A parte da gramática que estuda os sons da palavra. Segundo Fernandes (2003), a fonologia, nas línguas de sinais, é representada pela querologia que, por sua vez, é representada pelos queremas, por meio da articulação dos sinais. 2 A estrutura e forma das palavras. 3 Sistema de leis que permite estudar uma linguagem puramente sob o seu aspecto formal, sem referência à significação ou ao uso que dela se faz. 4 Elemento que confere o aspecto gramatical ao semantema, relacionando-o na oração e delimitando a função e significado.

Bibliografia:

FERNANDES, Elias e ARRUDA, Aline. SISTEMA DE BUSCA EM LIBRAS: Uma ferramenta para o estrangeiro em seu próprio país. 2017. 36. (Categoria e área de concentração) – FIT - Faculdade Impacta de Tecnologia, São Paulo, 2017.
IBGE. Censo Demográfico 2000. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?tema=censodemog2010_defic. Acesso em 20 de junho de 2016.

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Vitor Guerra
vitor@pulegada.com.br
Elias Fernandes
Senior UX Designer
,
RD - Raia Drogasil

Foi engraxate de sapato antes de ser Designer, e nesse tempo todo foi intérprete da Língua de Sinais, atuando desde produção de materiais para comunidade surda como interprete até em sala de cirurgia. Criou um livro bilíngue para crianças surdas que não virou Best Seller, mas já zerou a vida: plantou arvore; apresentou no ILA e na UXCoonfBr um paper; andou de helicóptero; assistiu o Thanos levar uma surra e o Batman bater no Super Homem. Hoje atua como Senior UX Designer na RD - Raia Drogasil.

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