O Caminho do Peabiru - mato batido em tupi antigo - era uma rede de estradas que saía de Santos até Florianópolis numa malha de ramificações que cobria boa parte do país, permeava a América do Sul e surpreendentemente levava até Cusco. Talvez até o Pacífico ou além. Você já ouviu falar nisto? Que o chão que nós pisamos tem uma história muito mais antiga e sofisticada do que a narrativa que chegou até nós?
Não é um folclore curioso, é uma história de inteligência, ciência e tecnologia.
Eu estava em Paranapiacaba olhando praquelas serpentes de trilhos enfiados no meio da mata e do morro que, por uma única falha na serra, era possível descer até o mar. Como os gênios ingleses da engenharia foram tão sábios para descobrir aquele ponto perfeito por onde se vencia a muralha da serra? Que homens brancos de olhos claros sábios e superiores! Mas não. Eles desceram os trilhos pelo Peabiru. A sabedoria era dos índios, já estava na terra. Estava tudo desenhado. Estava tudo projetado. Design by Tupiniquins.
Essa trilha era a nossa rota de seda. Sobe mandioca, desce milho. Muita riqueza, muita cultura, muita inteligência.
É 2019 em Mauá, São Paulo. Aquela rua que permeia a favela do lado da linha do trem é Peabiru. Ainda tem mato batido lá. As pessoas tem descendência dos tupiniquins mesclados com sangue dos negros escravizados e de todos as outras pessoas que as narrativas históricas foram, de forma sistemática e propositalmente, apagadas.
Quem não tem memória perde a referência de onde veio e para onde vai. E assim, perdido no tempo, não tem orgulho ou estima pelo seu chão ou pelo que é.
Essa é a razão - vergonha alheia - das famílias da nobreza sustentarem um carrilhão de sobrenomes. Mas não é o caso do menino sentado na beira do Peabiru. Alguns nem sabem quem é o pai. Sua história é truncada, é picotada. Mas contenha seu sentimento, não sinta pena, não desperte a caridade. Esse é o sentimento errado.
Paula Macedo, em uma de suas falas no ILA de Medellín, contou que em uma de suas pesquisa uma moça disse: “Cada pessoa é um mundo”. E foi bonito ver como essa moça realmente foi ouvida. Porque, afinal de contas, nosso ofício é um ofício de ouvir narrativas e humildemente tentar respeitar, compreender e aperfeiçoar de forma constante e recorrente.
Sim, estamos trabalhando em negócios. Planos de negócios. Investimentos. Produtos. Serviços. Essa é a hora de você imaginar o investidor engravatado andando de patinete enquanto dólares caem do alto dos edifícios.
Mas talvez seja pouco inteligente pensar que o foco em uma narrativa parcial, geralmente corroborada e atolada num pacto narcísico egocêntrico - em que só enxergamos nossos pares e tornamos convenientemente invisíveis todas as outras pessoas - seja uma estratégia sustentável. Te digo, companheiro, que dificilmente o é. E mais: pensando do ponto de vista das relações comerciais naturais à qualquer negócio: é pouco lucrativo. Muito pouco mesmo. Porque quanto menos gente se interessar pelo seu produto ou serviço, menos você vende.
Mas, voltando àquele sentimento: talvez seja empatia, mas talvez seja apenas pena o que nós sentimos das pessoas que nós não enxergamos. A superioridade do colonizador é o que nos faz sentir os designers que vão salvar o mundo. Nos faz olhar as pessoas de cima, nos sentirmos injustiçados por sermos tão sabidos e, diversas vezes, sermos deixados de lado como simples desenhadores.
"Porque, de modo geral, pode-se dizer que os homens são ingratos, volúveis, fingidos e dissimulados, avessos ao perigo, ávidos de ganhos; assim, enquanto o príncipe agir com benevolência, eles se doarão inteiros, lhe oferecerão o próprio sangue, os bens, a vida e os filhos, mas só nos períodos de bonança, como se disse mais acima; entretanto, quando surgirem as dificuldades, eles passarão à revolta [...] - De crudelitate et pietate; et an sit melius amari quam timeri, vel e contra" — O Príncipe, Maquiavel.
O designer é o príncipe, assim como o gestor, o investidor, o cara do marketing e o programador também é. Mas Maquiavel está certo. As pessoas são movidas por interesses bem mundanos, principalmente quando precisam apenas sobreviver.
Vemos cada vez mais projetos com foco num público no alto da pirâmide de Maslow, enquanto a base vulgarmente adapta, modifica e distorce o que nós projetamos. Transformando aquele nosso lindo produto em algo que nós não queríamos. Afinal, nossos produtos, nossas regras.
E assim, olhando pra dentro, para a carreira, para as ferramentas, para os títulos e para os métodos, vamos construindo os muros que nos dão segurança e conforto - e entregado cada vez menos valor. Porque mais importante do que as pessoas é defender a minha guilda.
Nesse redemoinho de egos em que cada grupo de profissionais - squad- se transforma, aqueles que ainda querem lutar para verdadeiramente incluir no jogo o maior número de pessoas possíveis sentem-se acuados, retraídos e sem voz. Porém, no espaço da nossa omissão é que crescem os discursos de caráter duvidoso e vazio que tem encantado nossos colegas. Sinto que precisamos retomar à base. E lembrar sempre do que é óbvio: nossos projetos são centrados nas pessoas - usuários, consumidores, clientes ou qualquer nome, sigla ou buzzword que queiram chamar.
Isto me lembra o princípio da liberdade descrito por Mikhail Bakunin:
"Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres, de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade. Eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano refletidos pela consciência igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de todos. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito."
Nossa obrigação como profissionais de UX está em advogar pelas pessoas. Pelos seus sentimentos, memórias e narrativas. Com humildade, acolhimento e respeito. Amplamente, corajosamente em alto e bom som. Como guerrilha, da base para o topo, revolucionar as relações e as interações das pessoas não só com os produtos e serviços, mas com suas comunidades, com a cidade e com a sociedade. Tendo consciência de que os artefatos tecnológicos são meios e não fins. São ferramentas para aprimorar as interações, revolucionar e melhorar de forma democrática e acessível a vida das pessoas.
O maravilhoso da nossa época é a escolha de poder construir qualquer coisa de maneira a potencializar a equidade e a autonomia. Não tendo uma ilusão maniqueísta de bondade ou maldade. Somos humanos e estamos aprendendo e ensinando, evoluindo e tentado fazer o melhor. Como disse Alan Turing:
Aqueles que podem imaginar qualquer coisa, podem criar o impossível.
Então, acolhendo e abraçando, ouvindo e respeitando vamos exercendo algo que pode ser um ofício muito bonito. Temos essa escolha. Temos a escolha de fazer melhor. Temos a escolha de construir pontes. E, ocasionalmente, através de novas narrativas, transformar vidas.
Cientista de computação com foco em design de interação, experiência do usuário e acessibilidade. Co-autor do Livro Open Web Platform e de diversas outras publicações. É líder local da Associação de Profissionais de Experiência do Usuário - UXPA São Paulo. Atualmente desenvolve estudos sobre a cidade, sua interação com as pessoas e como mapear e aprimorar jornadas e narrativas para desenvolver a economia local.