Como a utilização de elementos-chave da aprendizagem cooperativa formal possibilitou a migração do ensino de design presencial para o modelo online.
Apesar de eu ter começado a Mergo há 7 anos, a minha carreira no ensino começou em 2005, inicialmente com aulas de informática básica, mas depois se direcionando naturalmente para o design digital. A primeira coisa que fiz fora das escolas de informática foi uma oficina utilizando Software Livre na Universidade Federal de Viçosa/MG. Depois disso, dei aulas de ferramentas de design na Escola de Comunicação do portal Comunique-se, criei um curso de Web Design com Software Livre que ministrei no Centro Cultural Ruth Cardoso e no SESC Santana, dei uma aula em um curso de Arquitetura de Informação do Instituto Faber-Ludens, ministrei aulas de direção de arte na SAIBADESIGN, além de realizar oficinas na Campus Party Brasil — tudo isso em São Paulo.
Quando finalmente decidi começar a minha própria empreitada de ensino de Design , já acumulava 8 anos de experiência, e somando o tempo com a Mergo, são 15 anos de aulas no currículo em formato exclusivamente presencial. Eu até tive uma experiência online, quando em 2014 criei um curso de UX/UI Design para a Plataforma TIMTec, mas não havia interação com alunos, as aulas foram todas gravadas como palestras e publicadas para o acesso dos interessados. É um curso, mas não é uma aula. Toda minha experiência — por opção — sempre foi focada no presencial, visto que eu não conseguia enxergar uma forma de reproduzir de forma online as mesmas práticas colaborativas que se proporcionava em sala de aula, focadas no conceito de ensino de pessoas adultas — a Andragogia. No final do ano passado eu cheguei a participar de um episódio do podcast ExPatria contando um pouco da história da Mergo, e dizendo que cursos online não nos interessavam — e batia no peito para dizer isso.
Como o mundo dá voltas.
Na Pedagogia — o ensino de crianças e adolescentes — existe uma relação mais “top-down“, em que a figura central de professores têm controle sobre a experiência de aprendizagem, decidindo o que, como, quando, e onde as crianças irão aprender determinado conteúdo. Já na Andragogia — o ensino de pessoas adultas — esses estudantes têm o controle sobre grande parte da sua experiência de aprendizagem, tomam as suas próprias decisões e precisam de motivação para aprender, entendendo como aplicar isso na prática, em uma realidade profissional. (Andragogia Brasil)
Acontece que nesse ano de 2020 aconteceu algo que não estava nos planos. A pandemia do COVID-19 chegou e abalou as estruturas de todo o planeta, de todas as pessoas. A Mergo, como uma escola focada em atividades presenciais sofreu um grande impacto, se viu obrigada a cancelar ou adiar cerca de 20 turmas de cursos e 4 eventos. E ao mesmo tempo que precisávamos atender da melhor maneira possível todos os nossos alunos afetados, precisávamos também nos reinventar, redefinir tudo que vínhamos fazendo presencialmente nos últimos anos e fazer de uma maneira diferente.
Ainda que sem acreditar muito no modelo online, tivemos que finalizar as aulas de duas turmas de Formação em UX Design que haviam sido interrompidas. Foram 14 aulas online de 3 horas, em um formato expositivo. Para mim, isso não contemplava de forma completa todos os modos de aprender. Talvez ajudasse aquelas pessoas com um sistema sensorial mais aguçado para o modelo visual e auditivo — já que nas aulas podiam ver slides e exemplos, e ouvir todas as minhas explicações e orientações — mas não aquelas de perfil sinestésico, pois para estes estudantes não basta apenas ler, assistir ou ouvir as explicações de um professor, eles precisam entender o conteúdo na prática, com a mão na massa.
A verdade é que independente do perfil sensorial de cada pessoa, a aprendizagem se concretiza de forma mais completa quando todos os estudantes podem aprender em um formato que contemple todos os canais de captação de estímulos do seu processo cognitivo: lendo, vendo, ouvindo, discutindo e praticando de forma colaborativa. Por isso, sabendo que não poderia realizar mais as aulas presenciais, precisava descobrir modelos online que ao menos se aproximassem dessa experiência. Se a gente fosse simplesmente transformar as aulas em palestras discursivas virtuais, isso equivaleria a mais vídeos dos participantes desativados, estudantes permanecendo em silêncio e desmotivados para experimentar plenamente uma aula, ainda mais com os professores sendo incapazes de ver a linguagem corporal, de ler adequadamente a turma e construir relacionamentos através da discussão direta. Grande parte da energia, entusiasmo e cooperação desaparece nos ambientes de aprendizado virtual se você simplesmente transpõe os cursos para o online e espera a cooperação informal acontecer.
Analisando a experiência presencial, mesmo se tratando de pessoas adultas, a interação e cooperação não acontecia de maneira informal e espontânea entre os estudantes. De forma objetiva, as aulas em nossa sala empregavam práticas que promoviam coordenação, interdependência e responsabilidades. As pessoas eram desafiadas a realizar projetos e tarefas conjuntas a partir de uma cooperação formal estabelecida. Cada estudante era responsável não só pelo seu aprendizado, mas pelo aprendizado de toda a sua equipe.
O grande desafio que tínhamos nas mãos era trazer essa cooperação formal — tão presente no presencial — para o ambiente virtual, mas antes disso era preciso superar um outro grande pacote de barreiras. Essas aulas exigiriam não só o uso de novas ferramentas de trabalho, mas a orientação prévia aos estudantes sobre como eles as utilizariam. Era preciso alinhar como seriam divididos em grupos, como acessariam as ferramentas, e em quais delas precisariam de cadastro prévio. Teríamos que motivar as pessoas a manter suas câmeras ligadas para interagir, mas também precisaríamos aprender a lidar com estudantes sem computador conectados pelo celular e/ou com uma conexão lenta — e todas as limitações advindas disso. E por fim, ter a consciência de que as pessoas não estão em uma sala de aula planejada para esse tipo de imersão e aprendizado, e que o ambiente de suas casa pode não ser ergonômico, ou sofrer interrupções de filhos, cachorros latindo ou gatos passando sobre o teclado, e outras questões que vão desde uma pessoa esquecer de desligar câmera e microfone para ir ao banheiro, até mesmo problemas e discussões familiares mais sérias.
Estudo. Empatia. Experimentação. Estudo. Empatia. Experimentação.
Considerando que esses fatores citados não serão resolvidos, mas que no melhor dos casos vamos aprender a lidar com eles, voltamos a questão da cooperação formal, requisito essencial para que o aprendizado acontecesse. No ensino do design nós sempre tentamos reproduzir momentos e situações comuns no dia a dia de trabalho, como a elaboração de um projeto de produto ou serviço com uma equipe de trabalho, em que se possa haver a aplicação prática das técnicas e metodologias que estão sendo ensinadas. Dentro desse objetivo, nossos estudos nos levaram ao entendimento do que seriam os elementos-chave da aprendizagem cooperativa formal para esses cursos.
Cada aluno depende das contribuições, inclusão e sucesso dos outros membros do grupo para concluir uma tarefa específica, resolver um problema ou apresentar um projeto. Sempre fazemos o alinhamento com as pessoas de que estamos guiando elas por dentro de um processo, mas que o verdadeiro conhecimento será produzido pela interação entre elas, pela soma de seus conhecimentos, pela troca de experiências e construção coletiva. Cada estudante depende do outro para concluir sua tarefa e gerar o seu aprendizado, como o que acontece em um exercícios de criação de uma Proto-persona, atividade realizada a partir de um brainstorming, e que depende da colaboração e empenho do grupo para ser concluída.
O trabalho de cada aluno, tanto no processo de criação quanto no próprio produto, é tornado visível e avaliado por outros. Considerando o Design como uma cultura de resolução de problemas, e considerando cada problema como um prisma detentor de várias faces diferentes, precisamos também de vários pontos de vista para compreender e resolver um problema como um todo. Momentos onde o desenvolvimento de uma atividade é quebrada em várias responsabilidades, e onde cada membro da equipe precisará fazer a sua parte e trazer a sua contribuição para que haja um produto final resultante disso, depende da responsabilidade individual de cada um, como em uma atividade de criação de uma Mapa de Empatia, onde cada pessoa tem a traz a sua contribuição para a formação do mapa como um todo.
Cada membro do grupo fornece feedback construtivo aos outros sobre suas contribuições. Isso permite que cada pessoa agregue valor na construção do conhecimento da outra, ajudando a reduzir o viés empregado na solução e trazendo a perspectiva de sua própria realidade e contexto. Torna-se relevante que os estudantes não só façam tarefas em grupo, mas também possam ter o esforço de realização individual para essa avaliação coletiva, como em uma atividade de criação de protótipos de guardanapo (protótipos de ideias), onde uma pessoa precisa prototipar de forma individual as ideias produzidas pelo grupo, para submeter a avaliação e feedbacks do mesmo.
Estudantes apoiam o sucesso uns dos outros e compartilham ou agrupam seus recursos e conhecimentos. Eu costumo sempre dizer aos participantes que mais importante que o conteúdo fornecido é a troca de experiências entre eles. Sempre fui muito adepto a ideia de inteligência coletiva — um tipo de inteligência compartilhada que surge da colaboração de muitos indivíduos em suas diversidades. Por isso, a grande vantagem de um curso presencial — ou online ao vivo — é justamente a possibilidade de conexão com outras pessoas. A interface social é mais importante do que a interface gráfica, e por isso mesmo é essencial alternar entre a exibição de slides e a exibição das pessoas participantes do encontro. Olhar para o rosto de outras pessoas vai estimular a conversa, diferente de olhar para um slide.
Essas habilidades incluem ouvir, comunicar, criar confiança e trabalhar em momentos de conflito, além de serem mais integradas ao design de tarefas e liderança. A conclusão de certos objetivos não depende apenas de as pessoas dedicarem tempo, mas da troca de informação entre elas, da facilitação do processo e distribuição das tarefas em relação ao tempo, de não impor ideias mas sim aprender a ceder e criar em cima das ideias das outras pessoas, e da confiança de que cada uma realizará a sua parte da melhor maneira possível e sob o consenso do grupo. Como em uma atividade de criação de um protótipo navegável, que no curso só pode ser concluída a tempo a partir do trabalho conjunto, não apenas como mão de obra, mas no sentido da cooperação.
Meu objetivo aqui não é instruir ninguém a ensinar design de maneira remota, mas sim trazer a discussão sobre a realidade que o ano de 2020 trouxe não só em termos de ensino, mas na nossa relação com o trabalho — agora remoto — e todas as dificuldades tecnológicas e contextuais.
O ensino do Design de maneira remota não surgiu na quarentena do COVID-19. Em minhas pesquisas me deparei com práticas de ensino remoto documentadas em publicações do início dos anos 2000. Mas no momento não estamos apenas estudando e trabalhando remotamente, estamos fazendo isso em isolamento social, correndo riscos à saúde, perdendo parentes e amigos, acumulando tarefas pessoais e profissionais, com a rotina bagunçada, lidando com ansiedade, depressão, e todo conjunto de impactos que a situação gera em nossa saúde mental.
Ensinar design em tempos de quarentena é possível. Estamos fazendo isso há alguns meses. Se adaptar a mudanças mais do que seguir um plano… é essa a ideia, né? Não é a mesma coisa que fazíamos no presencial, é equivalente. Mas o objetivo não é fazer essa comparação, e sim discutir o fato de que essa prática de ensino se torna possível não pela compreensão das ferramentas e canais disponíveis para isso, nem pelas fórmulas de lançamento. A relação das pessoas com o conhecimento mudou, as suas perspectivas sobre o que precisam aprender e ensinar foi alarmada pela situação, e estamos diante de uma enxurrada de conteúdos disponibilizados, somados a uma ansiedade de informação que vêm muitas vezes esgotando a saúde mental das pessoas mais do que fortalecendo o aprendizado.
Não somos super heróis trazendo conhecimento para a humanidade no momento difícil. O problema da sociedade nunca foi falta de informação, e sim a construção do conhecimento. No momento em que vivemos, não precisamos ter o protagonismo como meta, e sim o pertencimento a comunidade, a colaboração mútua para que a construção do conhecimento aconteça. Para fazer as pessoas aprenderem design — ou qualquer outra coisa — não precisamos ensinar conteúdos, precisamos ensinar as pessoas a aprender. A principal ferramenta para isso não é o Zoom, o Miro, o Figma ou o Youtube… é a Empatia.
Abaixo, o vídeo e slides da minha palestra na Campus Party Digital Edition sobre o ensino do Design nos tempos de Quarentena.
Designer há 17 anos, sendo os últimos 10 dedicados a área de UX. Trabalhou em empresas como ESM Marketing Esportivo, Grupo iMasters e ContaAzul. Também é professor há 15 anos, na maior parte do tempo ensinando Design, o que o levou a fundação da Mergo, uma escola especializada em cursos e eventos na área de UX Design.