Pensar no futuro, seja próximo ou distante, sempre me pareceu uma tarefa difícil. Ao mesmo tempo, imaginar carros voadores, viagens espaciais e civilizações em outros planetas exerce um fascínio imenso sobre mim, criança crescida nos anos 80 e viciada em filmes de ficção científica.
Trabalhando há quase 20 anos no mercado digital, o fascínio deu lugar, em alguns momentos, à preocupação. Como é esse futuro que estamos desenhando? Como a tecnologia vai moldar nossa vida nas próximas décadas? Vamos perder o controle? Em que medida já perdemos? São questionamentos ao mesmo tempo nada originais e bastante necessários.
A pergunta que deu vida a esse texto diz respeito ao ano de 2020. Para esse breve futuro, eu gostaria que a ética tomasse o lugar do centro nas nossas discussões sobre design. Vejo hoje que a preocupação em relação a esse tema tem aumentado entre os profissionais de experiência do usuário, com novos livros, palestras, artigos e afins, parte fruto de séries e filmes sobre futuros distópicos, parte impulsionados pelo avanço galopante das novas tecnologias.
Os exemplos de interfaces problemáticas, que parecem ter deixado a ética de lado, são inúmeros. A rolagem infinita das redes sociais, pensadas para manter o usuário preso àquele mundo virtual, não só cumpriram seu papel como o fizeram bem demais, a ponto de viciar a quase todos nós. Um estudo de janeiro de 2019 da Royal Society for Public Healthy, do Reino Unido, com cerca de 11 mil adolescentes apontou que quase 40% das meninas de 14 anos que passam mais de cinco horas por dia nas redes sociais apresentam sintomas de depressão. Com tantas notícias negativas, o Instagram, apontada por um estudo da mesma Royal Society como a rede social mais tóxica, está implementando mudanças no aplicativo, como esconder o números de curtidas de uma publicação. A pergunta que fica é: por que chegarmos nesse extremo? Por que só depois de muitos estudos - e publicidade negativa - a empresa começou a tomar medidas para minimizar seus efeitos nocivos? Os designers do produto não perceberam o que estava acontecendo com seus jovens usuários, não deram atenção ao fato ou foram ignorados pela empresa? Qualquer que seja a resposta, a ética saiu perdendo.
Quando olhamos para o mundo em 2019 e percebemos o quanto os aplicativos de mobilidade mudaram a dinâmica das grandes cidades, nem sempre nos damos conta de que vidas e famílias inteiras também tiveram suas rotinas totalmente transformadas por conta da tecnologia. Ao mesmo tempo que muitos homens e mulheres ganharam uma nova fonte de renda (eram quase 4 milhões de motoristas de apps no Brasil em abril de 2019, segundo estimativa do IBGE), a jornada de trabalho aumentou para níveis não só exaustivos como perigosos – e sem cobertura trabalhista e de saúde alguma. Para além dos trabalhadores dessa indústria, taxistas, por exemplo, tiveram seus ganhos consideravelmente diminuídos, estejam eles inseridos ou não nos aplicativos. O curioso é que, em uma indústria onde se fala tanto de empatia, para esse profissional de fama ruim ela parece não valer.
Às vezes as consequências de uma nova tecnologia não são tão evidentes quanto motoristas mal pagos e entregadores exaustos em bicicletas alugadas. Como lembrou o designer Cennydd Boyles, autor de “Future Ethics”, os vizinhos de Airbnbs espalhados pelo planeta (ou com aqueles que ganharam um suporte para bicicletas de aluguel em frente às suas casas) tiveram suas rotinas alteradas do dia para a noite sem serem considerados no processo criativo. Para além disso, em maio de 2019, seis brasileiros morreram intoxicados por um vazamento de gás em um apartamento em Santiago, no Chile. A hospedagem havia sido feita através do aplicativo. Apesar de ter prestado auxílio à família das vítimas, o comunicado da empresa foi seco: os chamados “anfitriões” são os responsáveis pela manutenção de suas casas. Os brasileiros eram da mesma família e haviam viajado para comemorar o aniversário de 15 anos de uma das adolescentes.
Essas discussões podem parecer um tanto quanto distantes do nosso dia a dia em terras sulamericanas, mas liderando pesquisas com usuários desde 2008, eu mesma já passei por diversas situações em que um sinal de alerta se acendeu ao conversar com alguém na sala de espelho. Preciso confessar que essa é uma das partes do meu trabalho de que gosto mais: ser a advogada de defesa do usuário, liderar pequenas revoluções em nome daqueles que não têm voz. Um certo exagero romântico sempre aparece nesses momentos, então vamos tentar mostrar um exemplo mais concreto.
Em um estudo um tanto quanto recente do qual participei, uma interface induzia a uma contratação recorrente de um produto, o que não se mostrou nada claro para os entrevistados do teste de usabilidade. Sim, o gasto era mensal, não necessariamente a pessoa precisaria daquilo mais de um mês e a interface induzia à contratação recorrente. Nesse caso, o pesquisador (eu) faz o alerta e aponta os prejuízos financeiros que aquela decisão não desejada vai trazer para o usuário. Além disso, mostra a consequência negativa que aquela indução ao erro pode causar no relacionamento empresa-cliente, como perda de confiança e, no limite, cancelamento de contrato - apontar prejuízos financeiros sempre ajuda na defesa junto à área de negócios das empresas. Mas isso é suficiente? Se a equipe que trabalha na concepção do produto não se conscientizar sobre a importância de manter a postura ética na condução dos negócios, o pesquisador vai conseguir?
Claro que o papel de quem conduz o estudo é bem mais confortável do que o dos designers ou product owners, admito. Se posicionar contra uma decisão desse tipo fazendo parte da equipe à frente do projeto é bem mais difícil e, ainda sim, extremamente necessário. Mas como fazer isso? Como trazer questões éticas para discussões do dia a dia de uma empresa?
A pesquisadora Kim Goodwin, autora de “Designing for the Digital Age”, tem uma metodologia para a condução dos seus projetos. A primeira pergunta da lista da pesquisadora é básica: que objetivos você está ajudando a alcançar e para quem? Para Kim, trabalhar com “objetivo” é melhor do que “problema”, pois nem sempre um projeto nasceu para solucionar algo que está errado.
A segunda questão que a autora traz é: como você evitará as consequências negativas para indivíduos, comunidades e meio ambiente? A terceira pergunta é a chave da metodologia de Kim: como você medirá o progresso em direção à primeira questão e no sentido de evitar a segunda? Se não acompanharmos a evolução em relação às possíveis consequências negativas, isso será esquecido, sentencia.
Por fim, a pesquisadora indaga: qual é o seu diferencial sustentável? Trabalhar com ética não é viver um conto de fadas: de nada adianta atender adequadamente a todas as questões se o produto/serviço não vai se sustentar financeiramente.
Mais do que exercer a futurologia, meu desejo para 2020 é que essa discussão faça parte do nosso processo criativo. Para mim, pesquisa é a chave. Conversar com as pessoas é que nos abre para novos horizontes. Entender suas dificuldades e alegrias, seus desejos e frustrações, perceber erros que eles nem mesmo entendem que estão prestes a cometer – tudo isso faz parte de planejar produtos melhores e evitar catástrofes.
A partir dos achados colhidos em campo, é possível traçar planos mais claros para produtos e serviços, priorizando funcionalidades com maior impacto para os usuários. E os próprios insights gerados nas pesquisas devem servir de insumo para responder as perguntas de Kim. Quem aponta o caminho, é o usuário. O papel do pesquisador é fazer a leitura e trazer luz às discussões de fato importantes.
Para fechar essa breve reflexão, parafraseando o célebre autor, e agora fazendeiro, Alan Cooper: pode até não ser sua culpa, mas é sua responsabilidade.
Cofundadora da Saiba+, uma das mais conceituadas consultorias de usabilidade do Brasil, é agora sócia da ZOLY. Atuou para as principais empresas do País, dos mais diversos segmentos de atuação, conduzindo entrevistas em profundidade, testes de usabilidade, desenho de personas e jornadas do usuário, workshops, reformulação de interfaces e concepção de novos produtos digitais. É palestrante e coordenadora do capítulo paulistano do WIAD - Dia Mundial da Arquitetura de Informação -, evento realizado simultaneamente em mais de 50 cidades ao redor do mundo.