Trabalhar como pesquisadora em experiência do usuário é algo muito gratificante, já que estudar o comportamento humano para melhorar a experiência de um produto ou serviço pode ter um grande impacto na vida das pessoas. Porém, nem sempre as descobertas de uma pesquisa são utilizadas para o benefício dos usuários; às vezes, o foco principal está no negócio ou no lucro da empresa. Em uma sociedade cada vez mais conectada, expandimos a atuação do pesquisador para estudar a experiência da população nas cidades inteligentes. A nova pergunta que surge é: qual o papel do UX researcher em relação à ética e à privacidade desses cidadãos?
Nos últimos anos, temos discutido a ética da atuação dos designers nas chamadas dark patterns, ou padrões obscuros. Esse termo foi criado para designar estratégias e funcionalidades inseridas para "enganar" ou induzir o usuário a realizar ações indesejadas ou sem perceber, como ficar mais tempo conectado ou comprar algo por impulso. Frequentemente, alguns recursos são criados com boa intenção, mas podem ser transformados e usados de maneira involuntária pelo usuário.
Um exemplo recente foi o escândalo da Cambridge Analytica [Documentário The Great Hack], em que uma empresa privada utilizava dados do Facebook para comunicação estratégica eleitoral. Muitas pessoas compartilhavam inocentemente seus dados na internet, sem noção das consequências mundiais da manipulação de informação e opinião pública que isso poderia gerar.
Quando pesquisamos, temos acesso a muitos dados. Alguns são disponibilizados conscientemente pelos usuários, como quando perguntados em entrevistas ou questionários; e outros são coletados de forma passiva, como pelo Google Analytics, Facebook ou testes A/B. Essas informações podem ser utilizadas para melhorar o produto, mas, dependendo da política de privacidade, pode haver uma limitação de uso.
Um exemplo é a inteligência artificial dos assistentes virtuais. O Google Assistente utiliza um grande volume de dados capturados pelos produtos do Google, fazendo com que o programa tenha um volume maior de informações para “aprender" o comportamento e aprimorar o reconhecimento do comando de voz, obtendo respostas mais assertivas. Já a Siri, assistente da Apple, tem acesso a menos dados, e consequentemente, um menor aprendizado de máquina e precisão do serviço.
Em se tratando de cidades inteligentes, muitos serviços são conectados e os dados da população ficam disponíveis para vários órgãos governamentais, às vezes sem nosso conhecimento. Neste ano de 2019, Hong Kong foi centro de vários protestos, inclusive contra a vigilância tecnológica de Pequim, famosa por ser um dos lugares mais conectados do mundo. Como confiar que esses dados capturados pelo governo estão sendo utilizados para melhorias de serviços públicos, e não para o controle populacional?
Na indústria de saúde, informações sobre a população podem melhorar o serviço médico, transformando a saúde pública. Com sintomas e diagnósticos em massa, por exemplo, governos podem trabalhar no foco de uma epidemia, impedindo seu avanço para outras áreas. Sistemas de inteligência artificial podem aprender padrões e até prevenir doenças mais graves. Porém, quem pode ter acesso a um banco de dados sensíveis sobre as pessoas, e o quanto pode ser usado? Como regulamentar de uma forma organizada e segura?
A Microsoft definiu alguns princípios éticos para guiar o desenvolvimento e uso de inteligência artificial. São eles: justiça, inclusão, confiança, transparência, privacidade, segurança e responsabilidade. Eles criaram um jogo chamado Judgement Call, que ajuda a tomar decisões baseadas nesses princípios com foco nos stakeholders.
Muitos países já estão debatendo sobre a privacidade dos dados. No Brasil, em 2020, entrará em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), projeto discutido durante anos por diversos setores da sociedade. Entretanto, outras decisões estão sendo tomadas pelo governo sem transparência, como o projeto de união de banco de dados, com informações sensíveis disponibilizadas entre órgãos públicos.
No contexto de cidades conectadas, há várias fontes de captação de dados, como sensores, apps, fontes administrativas, crowdsourcing, sistema de informação geográfica, imagens, vídeos e redes sociais. Dessa forma, vale enfatizar algumas dicas de como podemos proteger os dados em pesquisa: dar autonomia de escolha ao indivíduo, anonimato nas informações, deixar clara a finalidade do uso dos dados, restringir o tipo de acesso e por quem, cuidar do armazenamento e do descarte.
O papel do pesquisador também engloba a privacidade dos dados que está coletando, bem como sua aplicação de forma ética. A sociedade sempre utilizou informações para tomar decisões, mas atualmente está acontecendo uma grande mudança. Por causa da diminuição da complexidade e do maior acesso a novas tecnologias, um número significativo de dados de alta qualidade está disponível para a população. Em contrapartida, técnicas de reconhecimento e interpretação de imagem e áudio podem automatizar pesquisas com o usuário. Também é responsabilidade dos pesquisadores utilizar esses dados sem violar a privacidade dos cidadãos.
O futuro parece preocupante, mas a discussão deve passar por uma descentralização e abertura dos dados, com transparência e poder para a população. Já sabemos da importância e do valor dos dados, por isso é necessário que eles não estejam sob controle de poucas pessoas, e sim distribuídos pela sociedade. Não tem mais sentido trabalharmos com Smart Cities (cidades inteligentes) e não falar em Smart Citizens (cidadãos responsáveis).
Imagino que a tendência é ter cada vez mais pesquisas em laboratórios de co-criação, em que a participação popular necessita estar presente e a inovação em serviços públicos seja feita com o cidadão no centro das tomadas de decisão. As cidades inteligentes são estruturadas pensando no que os cidadãos querem, e investindo em maneiras mais eficazes de alcançar esses resultados. Elas colocam as pessoas - e não a tecnologia - no centro das estratégias e investimentos. Dessa forma, podem ser adotadas algumas técnicas de outras indústrias, tais como: pesquisa de mercado em profundidade, laboratórios de experiência do cidadão e programas piloto para encontrar problemas e ajustar o desempenho, antes de lançar produtos ou serviços em escala.
A minha aposta é que o futuro da pesquisa com usuários englobará cidades inteligentes centradas no cidadão. Podemos ajudar na regulamentação dessas informações, manter o anonimato e privacidade ao utilizar os dados para aprimorar os serviços e definir boas práticas baseadas nos princípios éticos para os dados serem utilizados de forma a ajudar a população. Assim, o papel do pesquisador também consiste na urgente conscientização de utilizá-los de maneira responsável.
Mestra pela ESDI, UERJ, pós graduada em Gestión de Proyectos Gráficos pela Elisava, de Barcelona, certificada em UX pelo Nielsen & Norman Group e graduada em Desenho Industrial, pela UFRJ. Possui mais de 15 anos de experiência trabalhando em grandes empresas, startups, consultoria e como autônoma.